
No intrincado universo do direito penal, a compreensão dos efeitos do concurso de crimes não se restringe a um mero exercício acadêmico ou teórico. Ao contrário, configura-se como uma questão de extrema e inegável relevância prática. Seus desdobramentos, por sua vez, impactam diretamente a liberdade individual, a necessária proporcionalidade da pena e, em última instância, a própria efetividade das garantias constitucionais do réu.
Recentíssimos julgados do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a esse respeito, oferecem uma visão atualizada e sofisticada sobre a aplicação dos institutos do concurso material, do concurso formal e da continuidade delitiva, bem como sobre os critérios que orientam sua precisa distinção, a cumulatividade de penas e suas repercussões na dosimetria penal.
O concurso de crimes, instituto fundamental regulado pelos artigos 69 a 71 do Código Penal, tem a precípua função de organizar a resposta penal quando um mesmo agente comete dois ou mais crimes. Tal multiplicidade pode ocorrer por intermédio de diversas condutas, por uma única ação que resulta em múltiplos ilícitos, ou, ainda, por práticas reiteradas em circunstâncias semelhantes.
🔍 Concurso Material, Concurso Formal e Continuidade Delitiva: Além da Mera Teoria
Embora os conceitos inerentes a cada modalidade estejam positivamente expressos no Código Penal, a delimitação precisa de cada uma delas revela-se um desafio jurídico complexo, que frequentemente exige a intervenção e a uniformização de entendimentos pelos tribunais superiores. Com efeito, o enquadramento do caso concreto em uma ou outra modalidade pode gerar uma diferença substancial na pena aplicada ao réu. É precisamente nesse ponto que se manifesta o potencial tensionamento entre o devido processo legal, o princípio da individualização da pena e a imperiosa necessidade de uma repressão eficaz à criminalidade.
- O concurso material (art. 69 do CP), por definição, ocorre quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, que podem ser idênticos ou não. Nestas situações, as penas correspondentes a cada delito são somadas.
- Em contraste, o concurso formal (art. 70 do CP) verifica-se quando uma única ação ou omissão do agente produz dois ou mais crimes. Distinguem-se, neste cenário, duas importantes possibilidades:
- O concurso formal próprio ocorre quando os crimes resultam de uma única intenção (desígnio único). Aqui, aplica-se a pena do crime mais grave, aumentada em fração que varia de 1/6 a 1/2.
- Já o concurso formal impróprio se caracteriza pela presença de desígnios autônomos do agente, ainda que a conduta seja única. Nesses casos, as penas se somam, de maneira análoga ao concurso material.
- Por fim, a continuidade delitiva (art. 71 do CP) configura-se como um benefício legal. Sua aplicação é cabível quando, apesar de vários delitos da mesma espécie terem sido praticados, estes se deram em condições semelhantes de tempo, lugar, modo de execução e com uma unidade de desígnios. Nessa hipótese, aplica-se a pena de apenas um dos crimes (ou a mais grave, se diversas), acrescida de um aumento proporcional à quantidade de infrações, dentro do limite de 1/6 a 2/3.
A Jurisprudência Atual do STJ: Critérios e Aplicações
O STJ, enquanto Corte Superior, tem desempenhado um papel fundamental na delimitação dos critérios aplicáveis a cada modalidade de concurso. Sua atuação visa, primordialmente, garantir a coerência interna do sistema penal e a salvaguarda dos princípios constitucionais que regem o processo e a pena.
- Suspensão Condicional do Processo e Concurso de Crimes: O Tribunal consolidou, por meio da Súmula 243, o entendimento de que a suspensão condicional do processo (prevista no art. 89 da Lei nº 9.099/95) não é aplicável quando a pena mínima, seja pela soma no concurso material ou pela majoração no concurso formal/continuidade, excede um ano. Tal posicionamento reforça a necessidade de uma criteriologia objetiva, evitando distorções que poderiam banalizar o instituto ou gerar iniquidades em sua aplicação.
- Autonomia de Tipos Penais e Concurso Material: Um dos exemplos mais elucidativos advém do julgamento do Tema 1.168. Nele, o STJ firmou que os crimes de posse (art. 241-B do ECA) e distribuição de pornografia infantil (art. 241-A do ECA) configuram condutas autônomas, passíveis de punição em concurso material. Isso se justifica porque tais ilícitos não se confundem nem se subsumem um ao outro. Essa decisão, portanto, reforça o rigor técnico na definição dos tipos penais, coibindo interpretações que pudessem mitigar indevidamente o rigor punitivo em matéria tão sensível.
- Perdão Judicial e Concurso Formal: A Corte Superior também definiu que, mesmo no concurso formal, o perdão judicial não se estende automaticamente a todos os delitos. O reconhecimento desse benefício legal exige uma análise individualizada, sobretudo em casos como o do homicídio culposo no trânsito, em que o sofrimento psíquico do agente deve ter relação direta com a vítima específica para justificar a extinção da punibilidade.
- Arma na Posse de Traficante: Crime Autônomo ou Majorante?: Outro ponto de grande relevância reside na definição de quando a posse ou porte ilegal de arma se comunica com o tráfico de drogas. O STJ, ao julgar o Tema 1.259, estabeleceu que, na ausência de prova de que a arma estava intrinsecamente vinculada à segurança da atividade de tráfico, os crimes devem ser apenados de forma autônoma, mediante concurso material. Por outro lado, quando comprovado esse vínculo, a arma funciona como majorante do tráfico, não configurando um segundo delito.
- Latrocínio e Pluralidade de Vítimas: Crime Único ou Plural?: Recentemente, o Tribunal reviu seu entendimento sobre o crime de latrocínio, alinhando-se à jurisprudência do STF. No julgamento do AREsp 2.119.185, firmou-se que, havendo subtração de um só patrimônio, a pluralidade de vítimas da violência não gera múltiplos crimes de latrocínio, mas sim um crime único, afastando-se a aplicação do concurso formal impróprio.
A Complexidade dos Limites: Quando a Linha é Tênue
Embora a jurisprudência do STJ se esforce para assegurar coerência na aplicação dos critérios, não se pode, contudo, ignorar os riscos latentes de decisões que ampliem excessivamente o poder punitivo do Estado. Questões como o reconhecimento de desígnios autônomos no concurso formal impróprio, frequentemente embasados em elementos subjetivos como a presunção de dolo eventual, abrem margem para interpretações expansivas e, por vezes, pouco seguras.
Essa problemática é nitidamente visível no julgamento do AREsp 2.521.343, que consolidou o entendimento de que o dolo eventual também permite caracterizar desígnios autônomos, ensejando o cúmulo de penas no concurso formal impróprio. Esta linha interpretativa, embora possa ser considerada juridicamente consistente em tese, na prática, reforça o endurecimento penal e exige extremo rigor na análise fática para evitar injustiças.
A Advocacia Penal Diante dos Desafios do Concurso de Crimes
O avanço e a complexidade da jurisprudência do STJ sobre o concurso de crimes revelam um cenário em que o domínio técnico aprofundado sobre a teoria geral do delito e a dogmática penal se torna absolutamente indispensável para a atuação da advocacia criminal. Mais do que nunca, o advogado criminalista precisa estar apto a:
- Analisar, com precisão técnica, o correto enquadramento do concurso (material, formal ou continuidade) no caso concreto.
- Debater e discutir a configuração ou não de desígnios autônomos, um elemento frequentemente subjetivo, mas de grande impacto na dosimetria.
- Impugnar, de forma contundente, decisões que adotem critérios abusivos na dosimetria da pena, zelando pela proporcionalidade.
- Fiscalizar, com rigor, o respeito à individualização da pena e aos limites constitucionais do jus puniendi.
Em suma, a correta compreensão e aplicação dos critérios atinentes ao concurso de crimes não apenas impactam diretamente o quantum da pena a ser imposta, mas, de maneira mais profunda, refletem o compromisso do processo penal com os princípios da dignidade da pessoa humana, da proporcionalidade e da estrita legalidade. Este é um campo fértil para a atuação de uma defesa técnica e vigilante.
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